terça-feira, abril 29, 2008

Canceriano sem lar

As persianas impedem que a luz atinja seus olhos. Isso é bom. Domingo dos namorados. Das mães? Não sabe mais. Pode ser finados. Cinzas. Corpus Christi. Um café. Da namorada, nesse dia propício. Não há namorada, porém. Desde... lembra? Montevidéu, com escala em Buenos Aires, a última.

O reflexo acusa. É preciso tirar essa barba. Os pêlos do bigode já começam a fazer cócegas nos lábios. Da última vez não lembra: quando? O barbeador estava cego. Lavou os olhos remelentos. O reflexo observa o rosto moreno, pálido. O cabelo emaranhado. Unhas das mãos. Dos pés. Enormes. Entrou nessa fase – naturalista, dizia a si mesmo – quando? Não lembra. Os pubianos, peito, axilas. Naturalista, repetia com o olhar ao outro, o do espelho.

Até agora não abriu a boca, sabe da reação. A reação de quem sentirá um cheiro desagradável vindo do próprio estômago. Quem dera saísse por outros orifícios, pelo menos são mais distantes do nariz, mas não. Seu corpo não obedece mais. O hálito: abafado. Certamente terá vontade de vomitar, anda sensível esses dias. E o fará. E terá nojo da baba espessa alojada na pia. Mais vômito. Cai. Arrasta-se, fugidio, até a porta do quarto.

Respira, respira. Respira? Ainda.

Doses homeopáticas de esquizofrenia servem pra curar da solidão. Companhias nessas horas são importantes, concluiu. E riu, regozijado perante seu bom humor em situações extremas. E volta a dormir, pois amanhã será um belo e proveitoso dia, como foi hoje, e como tem sido todos estes últimos meses da sua vida.

9 comentários:

Anônimo disse...

a memória é uma ilha de edição (?)

esse texto está lindo.
lindo e triste.

me dá um abraço?

:}

Anônimo disse...

lendo de novo, é muito mais triste do que bonito. quer um abraço?

Esyath disse...

Rapaz, lembranças são como cenas desconeas de um filme editado. E as vezes os sonhos se misturam as lembranças e perdemos as ordens cronológicas. Mas no fundo sabemos... que o protagonista sempre foi... nosso eu.

Beijos (Des)conexos!

Borba disse...

Eu o li assim que tu o escreveu, esse teu texto, e estou desde lá sem comentar porque fiquei a pensar no que comentar. Nesse ínterim, acho que o li mais umas 3 vezes, a única coisa que me veio a mente, além de quão bom teu texto ficou, foi a dúdida do que aconteceu com o personagem para o deixar assim.

Sabe que tu podia tentar uma continuação?

Larissa Santiago disse...

é.... que a virgem da boa morte fique com ele!

hein?! virgem da boa morte?! eu hein!
:P

Anônimo disse...

Companhias são importantes em quase todas as ocasiões...
Beijso.

i. bê. gomes disse...

.nada melhor que um vômito para dar à insossa vida o amaro gosto de realidade.

.naturalista é um bom eufemismo para....


.amplexos.

Unknown disse...

gostei de todo esse rodeio pra descrever um cara descuidado depois do último namoro...
:P

Borba disse...

Será que é isso mesmo?