sexta-feira, agosto 15, 2008

O dor

Sentiu o cheiro no âmago do estômago. O cheiro que parecia ter cor, espessura e textura, tamanho o poder com que penetrava suas narinas, tinha sobretudo peso. Vinha como uma sucessão de sons e seus ecos, rechaçando pela sala, refletindo nas paredes imundas de sangue e caos, criando uma sensação metálica e transparente, vitral e triste. Um espectro visceral que corroia suas entranhas e quebrava suas unhas e fazia ranger seus dentes e arrepiar seus pêlos em uma agonia hedionda e incessante.
E veio a chuva de sapos.

sexta-feira, agosto 08, 2008

Prática Civil IV

A dúvida atual era se deveria atender ou não o telefone, que insistia em tocar. Deixaria as etiquetas pra depois.

Caminhou até a parede lado norte de sua sala, perto do telefone em cima da escrivaninha consumida pelo tempo e tirou a tomada da parede. Pronto, agora, no ar, só o blues.

Lembrou da água ebulindo na chaleira e deu uma corrida até a cozinha. Cansou, apesar de morar num quarto-e-sala de vinte e dois metros quadrados. A vida de recluso estava acabando com seu corpo. Café quente saindo, mais um dos seus vícios. Açúcar, outro.

Adorava olhar a fumaça se esvaindo pelo copo plástico. Lembrou de sua mãe, falando que beber café em copo plástico dá câncer, comprovado, passou no Jornal da TV. A velha tinha aquelas manias antigas e estranhas: leite com manga faz mal, feijão com banho também, camisa ao avesso, trovão sem chinelo, tudo isso. Fosse pelas manias dela, e ele já estaria morto.

Se bem que, pensou, já estava.

Há tanto tempo não convivia com ninguém, tinha perdido a prática da civilidade. Sua vida parecia nada mais que um emaranhado de lembranças com cheiro de nostalgia. Convivia com ele só, seus CDs, seus livros, suas manias e suas etiquetas amarelas.