quarta-feira, maio 09, 2007

Macaco

Não tem viv'alma que more e/ou ande pelas quebradas da Boca do Rio que não conheça tal figura. Metade nem sabe mesmo qual é o nome dele. Eu mesmo nunca soube. Pra todo mundo ele é apenas o Macaco.
Minha vó fala o nome verdadeiro dele de vez em quando - conhece ele desde pequeno - mas eu nunca lembro.
Me lembro de uma época que estava na moda falar gírias em inglês, por causa de uma novela global que se passava no Nordeste. Por um tempo chamaram ele de Monkey, mas essa não colou.
As primeiras lembranças que eu tenho dele são de quando eu tinha uns 8 anos. Todo fim de ano passando as férias na casa da avó, sempre via aquele homem negro-brilhante, sempre sem camisa, sempre usando uma calça surrada e imunda, puxando de uma perna, de um lado pro outro.
Ele é o típico faz-tudo.
Tá precisando reformar o portão, chama o Macaco.
Tá precisando consertar o telhado, chama o Macaco.
Tá precisando pintar a parede, chama o Macaco.
Sempre assim, solícito, ajudando e sendo ajudado, cobrando baratinho.
Eu cresci, envelheci, fui, voltei, hoje estou aqui. Mas ele parece ter as mesmas feições e os mesmos músculos fortes de sempre, carregando sacos de cimento de lá pra cá.
Sempre que eu passo ele solta um grito abafado e quase inaudível - Éééérico!
Não sei ao certo porque ele me chama assim, já que Érico não é o meu nome. Não que eu saiba. Talvez pelo fato do meu irmão se chamar Eric? Será que ele acha que somos gêmeos, e por isso nossos nomes são parecidos, e assim ele simplesmente quer me chamar de Érico? Não sei. Fato é que eu nunca o corrigi, e nunca vou. Deixa o Macaco.
Certo dia, voltando do trabalho, rua cheia, garotos jogando bola, senhoras conversando à porta de casa, ele me grita:
- Ô Érico, se você tivesse uma passagem, agora, você ia pro rio?
Eu pensei um pouco. Todo mundo parou pra ouvir. Eu sabia que ali tinha alguma.
- Ia. Porque?
Ele começou a rir, engasgou e quase não conseguiu largar a resposta.
- Leva uma muda de roupa suja minha pra lavar, certo?
Foi até sem graça, mas todo mundo rio tanto. Eu ri tanto.
Tudo bem, 1x0. Deixa o Macaco.
Mas Macaco não gosta só de trabalhar com a testa ao sol não. Nos fins de semana ele gosta de sair, tomar as suas, pegar suas "negas". Não sei quantas vezes ele já me prometeu levar num brega no Alto do Cabrito. Segundo ele, coisa de nível. Alta classe. - Bóra Érico, que tu vai gostar. - Ô! É só me chamar quando você estiver indo...
Ele nunca apareceu aqui na porta pra me chamar. Ainda bem. Sei lá né, deixa o Macaco.
Num desses bregas, colocaram drogas na cerveja do Macaco. Daquelas que os covardes põem na bebida das meninas, elam dormem, e eles fazem a festa. Só que ao invés do Macaco dormir, ele ficou foi doido. Teve uns surtos e saiu quebrando tudo. O dono do lugar, sem entender nada, e com medo daquela montanha de músculos negros e pesados, chamou a polícia.
Negro e pobre, é fácil imaginar o que aconteceu com ele. Minha vó ainda conta que se a irmã não tivesse ido no outro dia buscá-lo, ele teria morrido lá. Além da humilhação, a sequela: até hoje ele anda puxando a perna esquerda. Perdeu um nervo, e dizem que ficou mais maluco quando saiu do hospital.
Descobriram quem tinha colocado a droga na cerveja do Macaco, e uns caras de uma facção daqui botaram ele pra dormir.
Dizem que ele ainda tentou se defender, dizendo que tinha sido só uma "brincadeira".
- Brincadeira?! Brincadeira?! Isso lá é brincadeira que se faça, porra?! - Eles perguntavam enquanto batiam no sujeito.
Não falei? Devia ter deixando o Macaco em paz.

7 comentários:

Marcela disse...

Acho que em toda cidade existem os "Macacos" da vida não é!?
Esses que muitas vezes a gente passa e nem nota, mas que estão ali, suando, trabalhando, vigiando nosso sono, construindo nossas casas, cozinhando para gente... mas é, deixemos os Macacos...

né Érico, digo... Matheus. HAHA

Alfaia disse...

Sinistro tudo isso, homem!

é como diz uma parte do comentário acima, há sempre macacos em nossa vida
mesmo que eles sejam sapos, cachorros, gansos ou cavalos.

o meu tio era o Pato
ele sempre dizia que ia me levar num puteiro, pra me 'descabaçar'

cada uma!

:)

Anônimo disse...

pode crer.

gostei do comentário lá de cima, a parte do 'vigiando nosso sono'. isso é muito mais, aquela usual história marxsita. :)



tipo azim, vocês trabalham muito bem com a 'realidade' por aqui. isso de narrador em primeira pessoa é mesmo mágico. você até me angana com essas histórias, e eu quase sempr acredito que foi assim mesmo que aconteceu.

como disseram ali em cima, beijos 'érico'!

Anônimo disse...

Interessante este âmbito!


www.bonequinhodeluxo.com

Anônimo disse...

èrico, vontade incontida de verissímo?!
espero que sim!
e se for, tens um elemento delicioso:
A Crítica social.

Paloma disse...

adoro o jeito com que vcs transformam histórias simples em crônocas tão gostosas do nosso cotidiano...
agora... alto do cabrito??? sei não, hein??? hehehehe

Alexandre Lucio Fernandes disse...

boua :)

De tão arrepiante, meu deu até calafrio...

Mas ótimo texto.

abraços.
:)